Alimentação não é mercadoria
A interferência do sistema capitalista na produção e distribuição dos alimentos e outros recursos naturais
Sob à influência de sua época e do convívio social, os seres humanos fazem a história de diferentes maneiras, transformando e disputando os seus territórios de vida e produção. Todavia, antes de tais ações, carecem da energia que está primeiramente no Sol e em seguida, nos alimentos. Esta necessidade basilar quase sempre foi satisfeita por meio do trabalho individual e coletivo mediado na escala da comunidade, alicerçado na reciprocidade e na relação de complementaridade com a natureza.
O cultivo de alimentos pelas comunidades camponesas tem mais ou menos 12.000 (doze mil) anos de história (MAZOYER & ROUDART, 2010). Durante 97,5 % desse tempo, ou seja, 11.700 (onze mil e setecentos) anos as decisões em torno da organização, produção, circulação/distribuição e consumo do alimento esteve hegemonizada na escala local, baseada em princípios de vassalagem, sistemas de governo, status, religião, costumes e tradições (POLANYI, 2012).
A forma de integração social apresentada brevemente no parágrafo anterior possuía suas contradições e fragilidades, em decorrência do baixo desenvolvimento das forças produtivas. Porém, a ausência da comida no prato estava relacionada às intempéries climáticas, pragas, guerras ou outros eventos conjunturais. Diferentemente do que ocorre hodiernamente, todos desfrutavam do o ao alimento, mesmo os mendigos, dispunham do direito de existir assegurado pela solidariedade. Pode-se dizer que até então o alimento era um bem comum, ou seja, existia o reconhecimento público de a condição de á-lo deveria ser assegurada a todas as pessoas.
Com o capitalismo isso mudou, pois assim como tem ocorrido com diversos outros bens comuns (ar, água e conhecimento, por exemplo) o alimento se tornou uma mercadoria. Seu consumo não é mais atrelado à reciprocidade ou à escala local. Pelo contrário, como parte da reprodução ampliada do capital, a alimentação a a ser condicionada por cadeias que operam na escala global, afetando as dietas locais, dentre outros, pela diminuição do número de ingredientes que compõem a alimentação.
Conceitos como o de ultraprocessados e food miles (milhas alimentares) expressam muito bem como esse contexto tem gerado uma série de desafios para a saúde pública e para o meio ambiente. Os ultraprocessados são alimentos com elevado nível de industrialização, muitas vezes envolvendo a sintetização de substâncias orgânicas. Isso se dá com o objetivo de tornar o alimento mais barato, tendo como consequência a perda ou diminuição da sua carga de nutrientes. Os food miles se referem às grandes distâncias que o alimento percorre até chegar a nossa mesa. Isso contribui de modo direto com o aumento da emissão de gás carbono (CO2), um dos principais motivadores das mudanças climáticas.
Portanto, no atual modo de produção capitalista, os trabalhadores do campo e das cidades, juntos à natureza, são os mais impactados pela perversidade do modo de produção capitalista; fome, obesidade, doenças correlacionadas, redução da biodiversidade, degradação dos solos, poluição dos rios e oceanos, e as mudanças climáticas são os reflexos das faces perversas desse sistema.
Desta maneira, pensar a questão alimentar no século XXI requer combater o sistema neoliberal (capitalismo), concomitantemente, a criação de sistemas alimentares ecológicos, com canais de distribuição planificados prioritariamente em circuitos curtos e justos de comercialização. Os sujeitos com potencial de protagonismo nessas mudanças são os camponeses organizados em movimentos socioterritoriais em conjunto com os trabalhadores das cidades.
Referências
MAZOYER, Marcel; ROUTARDT, Laurence. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. (Org.) LEVITT, Kari Polanyi. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
Autores:
Gerson Antonio Barbosa Borges: Militante do MPA, Graduado em História e Geografia. Especialista em Economia e Desenvolvimento Agrário pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Mestrado em Desenvolvimento Territorial na América Latina e Caribe pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Atualmente é doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP).
Estevan Leopoldo de Freitas Coca: Universidade Federal de Alfenas (Unifal) – curso de Geografia. Professor Adjunto da Universidade Federal de Alfenas (Unifal) – curso de Geografia. Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com período sanduíche na University of British Columbia (UBC)