Por Lenine Guevara

A censura às artes e à cultura parecem ter sido um instrumento que nutriu a promessa bolsonarista de revogação de direitos sociais e a regulação comportamental, incidindo diretamente sobre as linguagens e grupos que defendem e são a diferença e a diversidade no país. O filme “Quem tem medo">O documentário “Quem tem medo?” narra casos de censura a obras artísticas, palestras e exposições, dialogando com autores das obras, os impactos pessoais e os danos coletivos da censura. O documentário posiciona a escalada contra as artes e cultura no pós-golpe da presidenta Dilma Rousseff, por meio de casos emblemáticos, que foram síntese de mais de duzentas e vinte ações de censura, mapeadas pelo movimento Mobile e citadas na ficha técnica final do documentário.

Performance “DNA de Dan”, de Maikon K (PR). Foto: Reprodução

Podemos acompanhar ações policiais, de câmaras legislativas e grupos conservadores que perseguiram obras como: “DNA de Dan”, de Maikon K ( 2017); a exposição Queermuseu (2017); a obra “O Bicho” de Wagner Schwartz (2017); o espetáculo “A Mulher Monstro” de José Neto Barbosa (2017); a palestra de Judith Butler (2017); a peça teatral “O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu” com Renata Carvalho (2017); a peça “Caranguejo Overdrive” de Aquela Cia de Teatro (2019); o caso de depredação da sede do “Porta dos Fundos” (2019); a perseguição do Secretário Especial de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, à peça “Res Pública 2023” dos grupos Thata de Teatro e Motosserra Perfumada (2019); e, por fim, ao caso marcante do pronunciamento de Roberto Alvim repetindo o discurso de Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler (2020). 

O pico de ações persecutórias e a sequência de criminalizações que aparecem até os dias atuais aos artistas, teve grave repercussão nacional no segundo semestre de 2017. Até este ano, o caso mais conhecido de judicialização das artes desde a redemocratização do Brasil não tinha a censura ao foco, mas as questões de direitos de patrimônio e mercado imobiliário:  o processo entre o Teatro Oficina Uzyna Uzona de José Celso Martinez e o grupo Silvio Santos que disputam o terreno Parque Rio Bixiga. Os empreendimentos propostos para o entorno do teatro pelo grupo Silvio Santos, desmontariam toda a razão pela qual esse teatro, construído pela arquiteta Lina Bo Bardi, foi tombado e marcou a história da cenografia no mundo: o seu diálogo vivo com o entorno do bairro e com a paisagem como condição física e estrutural da construção do prédio. No percurso de 37 anos na justiça, parecia impossível que o desígnio do grupo Silvio Santos de construir torres gigantescas no terreno, prosperasse. No entanto, em uma reviravolta, após as casas legislativas de São Paulo penderem pela preservação do patrimônio, em 26 de outubro de 2017, o grupo Silvio Santos ganhou parcialmente a ação contra a preservação do terreno do Parque Rio Bixiga, que circunda o Teatro Oficina Uzyna Uzona, para a construção de duas torres de 100m2, que não dialogam com o teatro, ando por cima do ato de tombamento. 

Naquela última semana de outubro de 2017, houve também censura à segunda apresentação do espetáculo “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” no Festival Internacional de Artes Cênicas (FIAC) em Salvador-BA, que teve de realocar a apresentação para o Goethe Institut, ao ser proibido de apresentar em equipamento público do Estado, em ação movida pelo deputado estadual Pastor Sargento Isidório.

“O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, adaptação dirigida por Natalia Mallo (SP),
com a atriz Renata Carvalho. Foto: Divulgação

Ainda naquela mesma semana de outubro, houve a proibição do show de Caetano Veloso na ocupação do MTST em São Bernardo do Campo, como também a articulação do Movimento Brasil Livre (MBL) contra a palestra de Judith Butler no SESC Pompeia, em São Paulo. Mas, porque essa semana foi tão marcante? 

Os eventos mais incendiários que antecederam essa avalanche foram a suspensão da exposição Queermuseu em Porto Alegre pelo Banco Santander e a exibição da performance “O Bicho”, pelo dançarino e coreógrafo Wagner Schwartz no MAM de São Paulo, em setembro daquele ano. Como podemos compreender no filme “Quem tem medo">Nessa onda que está virando pela permanente luta, coragem e enfrentamento à cultura do ódio, precisamos estar “atentos e fortes”, porque a aposta é o revés e o campo artístico-cultural, a plataforma direta para o revanchismo eleitoral.