Em decisão recente, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 635, também conhecida como a “ADPF das Favelas”, o Supremo Tribunal Federal (STF) apontou diretrizes para as operações policiais. Uma questão central, no entanto, restou digna de uma decisão de Pilatos: a utilização do helicóptero como plataforma de tiro, emprego inadequado sobre o qual é preciso tecer algumas considerações.

Ninguém ignora a grave situação da violência no Rio de Janeiro, como aliás no Brasil de um modo geral. Nossos indicadores criminais são insofismáveis. Para a parcela mais pobre da população brasileira, o cotidiano tem sido atravessado pelo medo e pela insegurança, causas do adoecimento físico e psíquico de boa parte da nossa gente, em especial dos moradores de favelas e periferias, bem como dos próprios policiais. Não se discute a necessidade de enfrentar a questão criminal, mas de um modo inteligente, eficiente e articulado. É preciso ponderar que uma política de segurança deve ser elaborada a partir do quadro normativo que a Constituição enuncia para as instituições, sob o risco de se desacreditar a justiça e o direito como princípios de organização da vida, em uma sociedade que se pretende humana e civilizada.

O tiro policial deveria pressupor a ocorrência de uma agressão injusta. Exige precisão,ponderação e moderação. Não é possível garantir a correção exigida para o tiro policial a bordo de uma plataforma que se abalança nos céus da cidade, por razões óbvias. Na decisão em comento, o STF não delimitou o emprego da aeronave por entender que essa é uma atribuição do Poder Executivo, a quem compete o comando das polícias e por extensão a prerrogativa de formular protocolos que assegurem o uso dos recursos materiais e humanos postos a serviço da população, dentro dos ditames da Constituição e do bom senso.

Algo de muito estranho acontece com a nossa humanidade, quando nos tornamos incapazes de perceber o óbvio; algo que Drummond já havia enunciado em sua poesia, no verso a nos servir de epígrafe: o mal que nasce da impotência das palavras. A principal vítima desse processo é a empatia. Se a possibilidade do uso de um helicóptero como plataforma de tiro — a disparar sobre os moradores de uma favela à guisa de “combater o crime” — não nos escandaliza, é porque a barbárie já faz parte do nosso panorama interior. Se ainda pretendemos realizar aquele objetivo fundamental, inserto na Constituição de 1988, da construção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e solidária, é urgente decidir: ou fazemos um debate sério sobre segurança pública, ou teremos perdido a possibilidade de construir instituições capazes de frear o horror.

Pastor Henrique Vieira é deputado federal (PSOL/RJ) e Renata Souza é deputada estadual (PSOL/RJ)