São Raimundo Nonato, no coração do semiárido do Piauí, carrega uma das maiores riquezas do Brasil: o patrimônio arqueológico mundial. Essa história de descobertas e resistência tem um nome que ecoa além do tempo e do espaço: Niède Guidon, cientista e arqueóloga que colocou o Brasil no mapa das grandes civilizações pré-históricas. Ainda criança – nasci e cresci na cidade -, era possível observar dentro e fora dos muros da escola os impactos de uma cientista do seu calibre, fazendo ciência pela/com/por nossa região. Foi lá pelos anos 80, anterior à redemocratização do país.

Desde a década anterior, Niède Guidon dedicou sua vida às cavernas e sítios arqueológicos de São Raimundo.Revelou um ado ancestral que desafia a visão eurocêntrica da história. Seus estudos descortinaram pinturas rupestres, ferramentas e vestígios de uma cultura que remonta a milhares de anos, criando um dos principais centros arqueológicos do planeta. Essas descobertas não apenas elevaram o nome da cidade, mas também despertaram identidade e orgulho entre nósmoradores.

A importância de Niède Guidon vai muito além da ciência. Sua trajetória inspira crianças e jovens, que veem na história de suas terras uma fonte de valor e esperança. A presença de um patrimônio tão rico estimula a curiosidade, o interesse pela história, pela cultura e pelo meio ambiente, contribuindo para uma educação mais contextualizada, que valoriza as raízes locais e promove o protagonismo juvenil.

As ruas de São Raimundo Nonato se modificavam. As pinturas rupestres identificadas pela pesquisadora am a ornar a cidade em placas, cartazes, camisas, bonés. Emergiam também nas práticas educativas das professoras – sim, eram a grande maioria mulheres! – a incorporação do orgulho de termos em solo sanraimundense, uma pesquisadora que mudava o curso da história (estória?) contada nos livros didáticos. Recordo bem de quando fazíamos visitas à Serra da Capivara, ao Museu do Homem Americano, e uma professora dizia com orgulho “crianças, vocês estão pisando na história da humanidade!” Parecia dar até um leve tremor nas pernas de emoção. 

Ter acompanhado o impacto do seu trabalho nos livros didáticos de História – chamados de Estudos Sociais na época – ao mesmo tempo em que gerou emprego, renda e formação para a classe popular de uma comunidade do semiárido do Piauí foi realmente dimensionar toda a potência de uma cientista tem em nossa sociedade.

Niède, assim a chamávamos na escola e nas ruas, nunca de “doutora” ou “professora Niède”, também realizou ações sociais importantes, como a preservação do patrimônio cultural e natural da região, junto com a comunidade na proteção e valorização de sítios arqueológicos. Incentivou a educação e a conscientização ambiental, com atividades que sensibilizam os moradores, especialmente crianças e jovens, sobre a importância de suas raízes e seu território. Também apoiou iniciativas de inclusão social em pesquisa e turismo sustentável com desdobramentos econômicos e culturais para os moradores de São Raimundo. Essas ações fortaleceram o orgulho local, valorizaram o patrimônio e estimularam o desenvolvimento na região.

Hoje, como professor e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB), e diante da imensurável dor de sua perda, compreendo que essa história de descobertas é um exemplo de como a ciência e a valorização do patrimônio transformam vidas. Eu, como uma criança que acompanhou as ações de Niède Guidon, apesar de me dedicar à Psicologia Escolar e Psicologia Política, acredito que o legado da cientista reforça como a educação que conecta teoria e prática, valoriza o território e incentiva a formação de pesquisadores comprometidos com a mudança. 

Sua presença em São Raimundo Nonato é um lembrete de que o conhecimento é uma ferramenta de resistência e de construção de um futuro mais justo. Sua dedicação mostra que a ciência pode e deve ser um instrumento de empoderamento para comunidades historicamente marginalizadas por quem tem poder político e julga ter o domínio do saber. Ao valorizar o patrimônio, fortalecemos a identidade cultural e promovemos uma educação que respeita e celebra a diversidade brasileira – insistentemente ocultada.

Que a trajetória de Niède Guidon continue a inspirar crianças, jovens, professores e pesquisadores a acreditarem no poder do conhecimento para transformar realidades. Afinal, o ado de São Raimundo Nonato é uma ponte para um futuro de esperança, inovação e orgulho de ser brasileiro, piauiense, caatingueiro.

Fauston Negreiros

Professor e pesquisador do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB)